"O
corpo conhece o tato; a língua, o paladar; o nariz, aromas; os ouvidos, sons;
os olhos, as formas; mais os homens que não conhecem o profundo do Si Mesmo
(Adhyâtman) não captam este Supremo"
Mahâbhârata (12.195.4)
"Quando
o yogin se qualifica pela prática da disciplina moral (yama) e por abster-se
das ações ilícitas (niyama), pode passar para a prática da postura e dos outros
meios."
- Yoga-Bhâshya-Vivarana 2.29
As normas da disciplina moral (yama) têm a finalidade de pôr freio ao poderoso instinto de sobrevivência e canalizá-lo para servir a um propósito superior, regulando as interações sociais dos yogins. O segundo membro do caminho óctuplo de Patanjali continua a controlar a energia psicofísica liberada pela prática regular da disciplina moral. Os elementos do autocontrole (nyama) dizem respeito à vida interior dos yogins. Enquanto as cinco regras de yama servem para harmonizar o relacionamento deles com os outros seres, as cinco regras de niyama harmonizam o relacionamento deles com a vida em geral e com a Realidade transcendente. As últimas cinco práticas são:
1.
Pureza (Shauca)
2.
Contentamento (Samtosha)
3.
Ascese (Tapas)
4.
Estudo (Svâdhyâya)
5.
Devoção ao Senhor (Îshvara-pranidhâna)
"A
limpeza é irmã da santidade": eis o que dizia John Wesley, e o puritanismo
da Índia acataria perfeitamente esse juízo. A purificação é uma das principais
metáforas da espiritualidade yogue, e por isso não é de surpreender que a
pureza seja considerada uma das cinco formas de autocontrole, Shauca.
O sentido da pureza fica explícito no Yoga-Bhâshya
(2.32), que distingue a limpeza externa da pureza interna (mental). A
primeira se realiza por meios tais como os banhos e a alimentação adequada, ao
passo que a segunda é fruto de instrumentos como a concentração e a meditação.
Em última análise, a personalidade em seu aspecto mais elevado, o sattva, deve ser tão pura que possa
espelhar sem distorções a luz do Si Mesmo transcendente. O Maitrâyanîya-Upanishad nos ensina acerca da pureza mental:
"Diz-se que a mente é
dúplice: pura ou impura. É impura devido ao contato com os desejos; é pura
quando liberta dos desejos. Quando o homem liberta a mente da preguiça e do
desmazelo, torna-a imóvel e chega então ao [estado] onde não há mente, é esse o
estado supremo. A mente deve ser contida no interior até a hora em que venha a
dissolver-se. Essa é a gnose e a salvação; tudo o mais não passa de
conhecimento livresco. Aquele cuja mente se tornou pura pela concentração e
entrou no Si Mesmo sente uma alegria que não se pode descrever com palavras e
que só é inteligível ao instrumento interior [i.e.,à psique]. (6.34)"
O
contentamento, Samtosha, é uma virtude exaltada pelos sábios do mundo interior.
No seu Yoga-Bhâshya (2.32), Vyâsa
explica-a como o não cobiçar-se mais do que se tem à mão. O contentamento,
portanto, é uma virtude diametralmente oposta à moderna mentalidade consumista,
a qual é movida pela necessidade de adquirir cada vez mais coisas para
preencher o vazio interior. O contentamento é uma expressão da renúncia, o
sacrifício voluntário das coisas que nos serão inevitavelmente arrebatadas no
momento da morte. Liga-se de perto àquela atitude de indiferença que faz com
que os yogins encarem com a mesma frieza um torrão de terra e uma pepita de
ouro. Isso permite que os yogins deparem com o sucesso e o fracasso, o prazer e
a dor, com a mesma equanimidade inabalável.
A
ascese, Tapas, é o terceiro elemento de Niyama e abrange práticas como
as de ficar de pé ou sentado imóvel por um tempo prolongado; suportar a fome, a
sede, o calor e o frio; o silêncio formal; e o jejum. A palavra Tapas significa
"clarão" ou "calor" e denota a grande energia
psicossomática que se produz através da ascese, energia essa que muitas vezes
se faz sentir sob forma de calor. Os yogins usam essa energia para aquecer o
caldeirão do seu corpo-mente até fazê-lo destilar o elixir da consciência
superior. Segundo o Yoga-Sûtra (3.45), o fruto dessa ascese é a perfeição do corpo,
o qual torna-se tão forte e robusto quanto um diamante. Não se deve, porém,
confundir tapas com a autoflagelação prejudicial e com o faquirístico suplício
de si mesmo.
O
Bhagavad-Gîtâ distingue três tipos de ascese, que variam segundo a
predominância de uma ou outra das três qualidades (gunas - falaremos sobre elas
em uma postagem posterior) da Natureza:
"A adoração prestada
aos deuses, aos nascidos duas vezes, aos mestres e aos sábios, bem como a
pureza, a retidão, a castidade* e a não-violência - [a isto] se chama a ascese
do corpo.
Palavras que não causam
inquietação e são verazes, agradáveis e benéficas, bem como a prática do estudo
(Svâdhyâya) - [a isto] se chama ascese da fala.
Serenidade mental, bondade,
silêncio, auto-controle e purificação dos estados [interiores] - a isso se
chama de ascese mental.
Quando essa tríplice escese
é praticada com fé suprema por homens jungidos e [que] não anseiam pelo fruto [
de suas obras], é qualificada como da natureza de sattva ( sutil ou puro).
A ascese feita com
ostentação ou para [assegurar] a cordialidade, a reverência e a veneração
[alheias], é qualificada aqui [neste mundo] como natureza rajas ( instável e
denso), É superficial e instável.
A ascese feita por força de
concepções tolas [com o objetivo] de infligir-se torturas a si mesmo, ou que
tem a finalidade de fazer mal a outra pessoa - é qualificada como a natureza de
tamas (escuridão e obscuridade).(17.14-19)"
O
estudo, Svâdhyâya, é o quarto membro de niyama e um aspecto
significativo da práxis yogue. Apalavra é composta de sva ("seu
próprio") e adhyâya ("entrar em") e denota o ato de penetrar no
sentido oculto das escrituras sagradas. O Shata-Patha-Brâhmana ("Brâhmana
dos Cem Caminhos"), obra pré-búdica, traz a seguinte passagem, que
descreve vivamente a extraordinária estima que se dedicava ao estudo das
ciências sagradas:
"O estudo e a
interpretação [das escrituras sagradas] são [uma fonte] de alegria [para o
estudante dedicado]. Ele junge sua mente e torna-se independente dos outros;
dia a dia vai ganhando poder [espiritual]. Dorme tranqüilo e é o seu próprio
médico. Controla os sentidos e maravilha-se no Um. Crescem-lhe a intuição e a
glória (yashas) [interior], [e ele adquire a capacidade] de fazer bem ao mundo
(loka-pakti) [lit. "de cozinhar o mundo"]. (11.5.7.1)
O
objetivo de Svâdhyâya não é compreensão intelectual; é deixar-se absorver pela
sabedoria dos antigos. É a consideração meditativa das verdades reveladas por
vigentes e sábios que cruzaram as remotas regiões que a mente não pode
alcançar, e que só o coração é capaz de receber e deixar-se transformar. Os
comentadores do Yoga-Sûtra que escreveram em sânscrito afirmam que Svâdhyâya
significa também a recitação meditativa (japa) dos textos sagrados, mas o rei
Bhoja só expressa a opinião de uma minoria quando afirma, em seu Râja-Mârtanda,
que o estudo engloba tão somente a recitação.
O
útimo elemento de Niyama, que merece de nós uma atenção especial, é a devoção
ao Senhor, Îshvara-Pranidhâna. O Senhor (Îshvara), é um dos Si Mesmos
transcendentes (Purusha), os quais, embora múltiplos são fundidos entre si.
Segundo a definição de Patanjali, a posição extraordinária que o Senhor ocupa
entre os múltiplos Si Mesmos se deve ao fato de Ele não se sujeitar jamais à
ilusão de estar privado de sua onisciência e onipresença. Os outros Si Mesmos
livres, porém, sofreram essa perda no momento mesmo em que conceberam-se como
uma personalidade egóica determinada, um corpo-mente finito. É certo que todos
os Si Mesmos são intrinsecamente livres, mas somente o Senhor é eternamente
consciente dessa verdade.
O
Senhor não é um Criador como o Deus judeu e cristão; tampouco é o Absoluto
universal de que falam os Upanishads
ou os textos sagrados do Budismo Mahâyâna. Isso fez com que alguns críticos
considerassem Îshvara como um
"intruso" no contexto do Yoga Clássico. Porém, a afirmação de que o Senhor
teve de entrar às escusas na metafísica dualista do Yoga de Patanjali não tem
fundamento. Põe de lado toda a história do Yoga Pré-Clássico, que era
evidentemente teísta ( ou, a rigor, pan-en-teísta). Para interpretar essa
questão, seria mais razoável supor que Patanjali, esforçando-se por dar uma
estrutura racional ao Yoga, impôs uma leve mudança à definição do conceito de
Îshvara para poder incorporá-lo ao seu sistema dualista. A solução não foi
satisfatória; isso se deduz das muitas críticas que recebeu de representantes
de outras tradições e do fato de que o Yoga Pós-Clássico retomou as concepções
pan-en-teístas das escolas pré-patanjálicas.
Por
que Patanjali achou por bem dar atenção à doutrina de Îshvara? A razão, muito simples, é que, para ele e para os yogins
do seu tempo, o Senhor era muito mais que um conceito. Seria mais sensato supor
que o Senhor corresponda, antes, a algo que todos eles conheciam por
experiência. A idéia da devoção ao Senhor e da graça (prasâda) fez parte do Yoga desde os seus mais antigos primórdios,
mas foi elevada a um lugar especial depois do surgimento de tradições teístas
como a Pâncarâtra, consubstanciada no Bhagavad-Gîtâ.
A
mente religiosa tende naturalmente a adorar a Realidade maior. É como observou
o Swami Ajaya (Alan Weinstock):
" Enquanto estivermos
envolvidos com as nossas necessidades, com as idéias de "eu" e
"meu", permaneceremos inseguros...O cultivo da entrega e da devoção
substitui esse ensimesmamento pela percepção do vínculo que interliga todas as
coisas e sustenta todo este universo. A experiência da devoção e da entrega nos
deixa abertos à sensação de que há algo cuidando de nós. Percebemos também que
temos a capacidade de tornarmos-nos instrumentos da consciência superior,
servindo ao nosso próximo e dando-lhe o que nos for possível para ajudá-lo a
despertar também."
A
devoção ao Senhor é o coração que se abre para o Ser transcendente, que, para o
indivíduo não-iluminado, é uma realidade e uma força objetivas, mas que no ato
da iluminação, é percebido como idêntico ao Si Mesmo transcendente do yogin. O
Yoga-Sûtra não deixa explícito, mas a doutrina parte do princípio de que todos
os Si Mesmos transcendentes, inclusive Îshvara, são eternos e onipresentes; por
isso, embora se diga que eles sejam muitos, é necessário que coincidam uns com
os outros.
O
Yoga-Bhâshya explica da seguinte maneira a mecânica do processo de devoção:
"Em virtude da de
devoção, [isto é], em virtude de um amor (bhakti) específico [por Ele], o
Senhor se inclina [para o yogin] e concede os seus favores a ele
especificamente, por causa da disposição que demostrou. Por essa disposição e
por ela somente é que o yogin se aproxima da consecução do êxtase (samâdhi) e
do fruto do êxtase, [que é a libertação]. (1.23)"
O
autocontrole (Niyama), em suas cinco formas, é mais, portanto, do que um
esforço pessoal, pois acarreta o elemento da graça. Os yogins fazem todo o
possível para compreender e transcender os muitos meios pelos quais a
personalidade egóica convencional procura perpetuar-se. Mas, em última análise,
a passagem da existência individualizada para a realização extática do Si Mesmo
depende da intervenção divina.
Este texto foi retirado do livro " A Tradição do Yoga - História, Literatura, Filosofia e Prática" de Georg Feuerstein, e sofreu pequenas adaptações feitas por mim somente com o intuito de tornar mais claro o entendimento.
Namaskar - "O Divino que habita em mim saúda o divino que habita em você!
Gabriella Fernandes
Este texto foi retirado do livro " A Tradição do Yoga - História, Literatura, Filosofia e Prática" de Georg Feuerstein, e sofreu pequenas adaptações feitas por mim somente com o intuito de tornar mais claro o entendimento.
Namaskar - "O Divino que habita em mim saúda o divino que habita em você!
Gabriella Fernandes
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