segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Niyama ou Autocontrole - O segundo membro do caminho óctuplo de Patanjali




"O corpo conhece o tato; a língua, o paladar; o nariz, aromas; os ouvidos, sons; os olhos, as formas; mais os homens que não conhecem o profundo do Si Mesmo (Adhyâtman) não captam este Supremo"

Mahâbhârata (12.195.4)

"Quando o yogin se qualifica pela prática da disciplina moral (yama) e por abster-se das ações ilícitas (niyama), pode passar para a prática da postura e dos outros meios."

- Yoga-Bhâshya-Vivarana 2.29


As normas da disciplina moral (yama) têm a finalidade de pôr freio ao poderoso instinto de sobrevivência e canalizá-lo para servir a um propósito superior, regulando as interações sociais dos yogins. O segundo membro do caminho óctuplo de Patanjali continua a controlar a energia psicofísica liberada pela prática regular da disciplina moral. Os elementos do autocontrole (nyama) dizem respeito à vida interior dos yogins. Enquanto as cinco regras de yama servem para harmonizar o relacionamento deles com os outros seres, as cinco regras de niyama harmonizam o relacionamento deles com a vida em geral e com a Realidade transcendente. As últimas cinco práticas são:

1.            Pureza (Shauca)

2.            Contentamento (Samtosha)

3.            Ascese (Tapas)

4.            Estudo (Svâdhyâya)

5.            Devoção ao Senhor (Îshvara-pranidhâna)

"A limpeza é irmã da santidade": eis o que dizia John Wesley, e o puritanismo da Índia acataria perfeitamente esse juízo. A purificação é uma das principais metáforas da espiritualidade yogue, e por isso não é de surpreender que a pureza seja considerada uma das cinco formas de autocontrole, Shauca. O sentido da pureza fica explícito no Yoga-Bhâshya (2.32), que distingue a limpeza externa da pureza interna (mental). A primeira se realiza por meios tais como os banhos e a alimentação adequada, ao passo que a segunda é fruto de instrumentos como a concentração e a meditação. Em última análise, a personalidade em seu aspecto mais elevado, o sattva, deve ser tão pura que possa espelhar sem distorções a luz do Si Mesmo transcendente. O Maitrâyanîya-Upanishad nos ensina acerca da pureza mental:

"Diz-se que a mente é dúplice: pura ou impura. É impura devido ao contato com os desejos; é pura quando liberta dos desejos. Quando o homem liberta a mente da preguiça e do desmazelo, torna-a imóvel e chega então ao [estado] onde não há mente, é esse o estado supremo. A mente deve ser contida no interior até a hora em que venha a dissolver-se. Essa é a gnose e a salvação; tudo o mais não passa de conhecimento livresco. Aquele cuja mente se tornou pura pela concentração e entrou no Si Mesmo sente uma alegria que não se pode descrever com palavras e que só é inteligível ao instrumento interior [i.e.,à psique]. (6.34)"

O contentamento, Samtosha, é uma virtude exaltada pelos sábios do mundo interior. No seu Yoga-Bhâshya (2.32), Vyâsa explica-a como o não cobiçar-se mais do que se tem à mão. O contentamento, portanto, é uma virtude diametralmente oposta à moderna mentalidade consumista, a qual é movida pela necessidade de adquirir cada vez mais coisas para preencher o vazio interior. O contentamento é uma expressão da renúncia, o sacrifício voluntário das coisas que nos serão inevitavelmente arrebatadas no momento da morte. Liga-se de perto àquela atitude de indiferença que faz com que os yogins encarem com a mesma frieza um torrão de terra e uma pepita de ouro. Isso permite que os yogins deparem com o sucesso e o fracasso, o prazer e a dor, com a mesma equanimidade inabalável.

A ascese, Tapas, é o terceiro elemento de Niyama e abrange práticas como as de ficar de pé ou sentado imóvel por um tempo prolongado; suportar a fome, a sede, o calor e o frio; o silêncio formal; e o jejum. A palavra Tapas significa "clarão" ou "calor" e denota a grande energia psicossomática que se produz através da ascese, energia essa que muitas vezes se faz sentir sob forma de calor. Os yogins usam essa energia para aquecer o caldeirão do seu corpo-mente até fazê-lo destilar o elixir da consciência superior. Segundo o Yoga-Sûtra (3.45), o fruto dessa ascese é a perfeição do corpo, o qual torna-se tão forte e robusto quanto um diamante. Não se deve, porém, confundir tapas com a autoflagelação prejudicial e com o faquirístico suplício de si mesmo.

O Bhagavad-Gîtâ distingue três tipos de ascese, que variam segundo a predominância de uma ou outra das três qualidades (gunas - falaremos sobre elas em uma postagem posterior) da Natureza:

"A adoração prestada aos deuses, aos nascidos duas vezes, aos mestres e aos sábios, bem como a pureza, a retidão, a castidade* e a não-violência - [a isto] se chama a ascese do corpo.

Palavras que não causam inquietação e são verazes, agradáveis e benéficas, bem como a prática do estudo (Svâdhyâya) - [a isto] se chama ascese da fala.

Serenidade mental, bondade, silêncio, auto-controle e purificação dos estados [interiores] - a isso se chama de ascese mental.

Quando essa tríplice escese é praticada com fé suprema por homens jungidos e [que] não anseiam pelo fruto [ de suas obras], é qualificada como da natureza de sattva ( sutil ou puro).

A ascese feita com ostentação ou para [assegurar] a cordialidade, a reverência e a veneração [alheias], é qualificada aqui [neste mundo] como natureza rajas ( instável e denso), É superficial e instável.

A ascese feita por força de concepções tolas [com o objetivo] de infligir-se torturas a si mesmo, ou que tem a finalidade de fazer mal a outra pessoa - é qualificada como a natureza de tamas (escuridão e obscuridade).(17.14-19)"
 

O estudo, Svâdhyâya, é o quarto membro de niyama e um aspecto significativo da práxis yogue. Apalavra é composta de sva ("seu próprio") e adhyâya ("entrar em") e denota o ato de penetrar no sentido oculto das escrituras sagradas. O Shata-Patha-Brâhmana ("Brâhmana dos Cem Caminhos"), obra pré-búdica, traz a seguinte passagem, que descreve vivamente a extraordinária estima que se dedicava ao estudo das ciências sagradas:

"O estudo e a interpretação [das escrituras sagradas] são [uma fonte] de alegria [para o estudante dedicado]. Ele junge sua mente e torna-se independente dos outros; dia a dia vai ganhando poder [espiritual]. Dorme tranqüilo e é o seu próprio médico. Controla os sentidos e maravilha-se no Um. Crescem-lhe a intuição e a glória (yashas) [interior], [e ele adquire a capacidade] de fazer bem ao mundo (loka-pakti) [lit. "de cozinhar o mundo"]. (11.5.7.1)

O objetivo de Svâdhyâya não é compreensão intelectual; é deixar-se absorver pela sabedoria dos antigos. É a consideração meditativa das verdades reveladas por vigentes e sábios que cruzaram as remotas regiões que a mente não pode alcançar, e que só o coração é capaz de receber e deixar-se transformar. Os comentadores do Yoga-Sûtra que escreveram em sânscrito afirmam que Svâdhyâya significa também a recitação meditativa (japa) dos textos sagrados, mas o rei Bhoja só expressa a opinião de uma minoria quando afirma, em seu Râja-Mârtanda, que o estudo engloba tão somente a recitação.

O útimo elemento de Niyama, que merece de nós uma atenção especial, é a devoção ao Senhor, Îshvara-Pranidhâna. O Senhor (Îshvara), é um dos Si Mesmos transcendentes (Purusha), os quais, embora múltiplos são fundidos entre si. Segundo a definição de Patanjali, a posição extraordinária que o Senhor ocupa entre os múltiplos Si Mesmos se deve ao fato de Ele não se sujeitar jamais à ilusão de estar privado de sua onisciência e onipresença. Os outros Si Mesmos livres, porém, sofreram essa perda no momento mesmo em que conceberam-se como uma personalidade egóica determinada, um corpo-mente finito. É certo que todos os Si Mesmos são intrinsecamente livres, mas somente o Senhor é eternamente consciente dessa verdade.

O Senhor não é um Criador como o Deus judeu e cristão; tampouco é o Absoluto universal de que falam os Upanishads ou os textos sagrados do Budismo Mahâyâna. Isso fez com que alguns críticos considerassem Îshvara como um "intruso" no contexto do Yoga Clássico. Porém, a afirmação de que o Senhor teve de entrar às escusas na metafísica dualista do Yoga de Patanjali não tem fundamento. Põe de lado toda a história do Yoga Pré-Clássico, que era evidentemente teísta ( ou, a rigor, pan-en-teísta). Para interpretar essa questão, seria mais razoável supor que Patanjali, esforçando-se por dar uma estrutura racional ao Yoga, impôs uma leve mudança à definição do conceito de Îshvara para poder incorporá-lo ao seu sistema dualista. A solução não foi satisfatória; isso se deduz das muitas críticas que recebeu de representantes de outras tradições e do fato de que o Yoga Pós-Clássico retomou as concepções pan-en-teístas das escolas pré-patanjálicas.

Por que Patanjali achou por bem dar atenção à doutrina de Îshvara? A razão, muito simples, é que, para ele e para os yogins do seu tempo, o Senhor era muito mais que um conceito. Seria mais sensato supor que o Senhor corresponda, antes, a algo que todos eles conheciam por experiência. A idéia da devoção ao Senhor e da graça (prasâda) fez parte do Yoga desde os seus mais antigos primórdios, mas foi elevada a um lugar especial depois do surgimento de tradições teístas como a Pâncarâtra, consubstanciada no Bhagavad-Gîtâ.

A mente religiosa tende naturalmente a adorar a Realidade maior. É como observou o Swami Ajaya (Alan Weinstock):

" Enquanto estivermos envolvidos com as nossas necessidades, com as idéias de "eu" e "meu", permaneceremos inseguros...O cultivo da entrega e da devoção substitui esse ensimesmamento pela percepção do vínculo que interliga todas as coisas e sustenta todo este universo. A experiência da devoção e da entrega nos deixa abertos à sensação de que há algo cuidando de nós. Percebemos também que temos a capacidade de tornarmos-nos instrumentos da consciência superior, servindo ao nosso próximo e dando-lhe o que nos for possível para ajudá-lo a despertar também."

A devoção ao Senhor é o coração que se abre para o Ser transcendente, que, para o indivíduo não-iluminado, é uma realidade e uma força objetivas, mas que no ato da iluminação, é percebido como idêntico ao Si Mesmo transcendente do yogin. O Yoga-Sûtra não deixa explícito, mas a doutrina parte do princípio de que todos os Si Mesmos transcendentes, inclusive Îshvara, são eternos e onipresentes; por isso, embora se diga que eles sejam muitos, é necessário que coincidam uns com os outros.

O Yoga-Bhâshya explica da seguinte maneira a mecânica do processo de devoção:

"Em virtude da de devoção, [isto é], em virtude de um amor (bhakti) específico [por Ele], o Senhor se inclina [para o yogin] e concede os seus favores a ele especificamente, por causa da disposição que demostrou. Por essa disposição e por ela somente é que o yogin se aproxima da consecução do êxtase (samâdhi) e do fruto do êxtase, [que é a libertação]. (1.23)"

O autocontrole (Niyama), em suas cinco formas, é mais, portanto, do que um esforço pessoal, pois acarreta o elemento da graça. Os yogins fazem todo o possível para compreender e transcender os muitos meios pelos quais a personalidade egóica convencional procura perpetuar-se. Mas, em última análise, a passagem da existência individualizada para a realização extática do Si Mesmo depende da intervenção divina.


Este texto foi retirado  do livro " A Tradição do Yoga - História, Literatura, Filosofia e Prática" de Georg Feuerstein, e sofreu pequenas adaptações feitas por mim somente com o intuito de tornar mais claro o entendimento.

Namaskar - "O Divino que habita em mim saúda o divino que habita em você!

Gabriella Fernandes

 

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